ATUALIDADES
O dinheiro do futuro
Nada de euro, dólar ou bolsa. O fato econômico de 2011 que será
lembrado daqui a 200 anos talvez seja outro: a crise do bitcoin, a
moeda virtual sem pátria que causou uma febre financeira. E que pode
mudar o mundo
por Cristine Kist
Pousadas na Itália, restaurantes em Nova York, voos de
parapente na Croácia e calcinhas usadas em vários países (tem gosto pra
tudo): todas essas coisas podem ser compradas com bitcoins, espécie de
moeda virtual aceita por centenas de estabelecimentos do mundo todo. E
como o euro só vale para fazer compras na União Europeia e a nakfa só é
aceita nos armazéns da Eritreia, o bitcoin cria uma ideia relativamente
inédita de país sem fronteiras.
Uma moeda (qualquer moeda,
digital ou de latão) só tem valor se as pessoas confiarem nela. Se todo
mundo acredita que um pedaço de papel azul estampado com um peixe da
família dos serranídeos vale R$ 100, então vale. Tradicionalmente, é o
Estado o responsável por criar, implantar e assegurar a validade das
moedas (o que é feito principalmente pela cobrança de impostos, que só
podem ser pagos com a moeda oficial). Depois, o dinheiro é repassado aos
bancos, e, só então, às pessoas e às empresas.
Pois que um grupo
de nerds ligeiramente descontentes com esse sistema resolveu criar um
outro, que anulasse integralmente a interferência dos bancos e governos.
"Eu simplesmente gosto da ideia de um sistema monetário
descentralizado, que não é controlado por burocratas, banqueiros ou
políticos", explica o líder do projeto de desenvolvimento do bitcoin,
Gavin Andresen. Para fazer isso, eles desenvolveram uma economia
completamente virtual. É como se todo o sistema monetário ficasse
restrito às transações feitas por home banking: o dinheiro é transferido
de uma conta para outra e nós sabemos que ele foi transferido porque os
números da nossa conta ficaram maiores ou menores. Não precisamos ter
contato com nenhuma pilha de notas de R$ 100 para acreditar que a
transferência foi feita de fato.
O conceito do bitcoin foi criado
no final de 2008 por um obscuro programador identificado apenas como
Satoshi Nakamoto, nome tão comum no Japão quanto João da Silva é no
Brasil (e, por isso mesmo, acredita-se que esse não seja o real nome
dele - ou dela). A ideia era permitir transações financeiras diretamente
entre duas pessoas, sem a necessidade da intermediação de um banco ou
de um sistema de pagamento online, como o PayPal. Isso resultaria
primeiramente em taxas mais baratas, já que, quando um banco calcula sua
tarifa sobre transferências, ele já prevê a cobertura das fraudes
consideradas inevitáveis (e aí os bons clientes pagam mais para
compensar os maus). Além disso, também seriam eliminados todos os custos
relativos à impressão, transporte e distribuição do dinheiro físico.
Funciona assim
Para
ter acesso aos bitcoins, é necessário fazer o download de uma espécie
de carteira digital. Ela cumpre o papel de conta corrente. As primeiras
moedas geralmente são adquiridas nas casas de câmbio virtuais, sites que
trocam bitcoins por dinheiro tradicional. Depois, se Fulano quiser
comprar alguma coisa que Beltrano esteja vendendo em troca de bitcoins,
passa suas moedas para a carteira digital dele. É como uma transferência
entre contas. Cada conta tem um endereço (na forma de uma sequência de
letras e números). Se eu vendo uma bicicleta para você por bitcoins,
você entra na sua carteira digital (a que instalou no seu computador),
digita o endereço da minha (já que eu também baixei o programa) e faz o
depósito. Pronto. Se um site de comércio eletrônico aceita bitcoins como
pagamento, por exemplo, vai estar lá o endereço da carteira digital
dele. Simples.
Essa foi a parte básica do nosso tutorial. Agora
vamos entrar um pouco na avançada. Para funcionar como moeda, o bitcoin
precisa obedecer a dois critérios básicos. O primeiro é ser algo que
muita gente queira. Bom, como não faltou quem gostasse da ideia de
brincar com uma moeda que não tem governo nenhum por trás, esse critério
foi atendido. Começaram a aparecer pessoas vendendo produtos reais em
troca de bitcoins, só pela graça de possuir bitcoins.
Agora, o
critério 2: uma moeda precisa ser mantida como um recurso relativamente
escasso. Só assim ela mantém seu valor. O ouro, por exemplo, é escasso. E
por isso mesmo "vale ouro". É isso que o bitcoin quer valer. Como?
Mantendo-se como um recurso escasso, ué.
O sistema por trás do
bitcoin prevê que o máximo de moeda circulando será de 21 milhões de
unidades (por enquanto, existem cerca de 7 milhões - o equivalente a
pouco mais de US$ 30 milhões). Os responsáveis por colocar moeda nova no
mercado são os usuários que cedem a capacidade de seus computadores via
internet para manter o sistema funcionando. Na prática, o sistema
fabrica dinheiro novo e distribui para esses usuários. Por enquanto,
eles ganham, juntos, até 50 bitcoins (BTCs, pela sigla oficial) de 10 em
10 minutos, mas essa quantia irá diminuindo gradativamente até bater em
zero (o que deve acontecer por volta de 2035). Essa foi a forma
encontrada para controlar a inflação, manter o valor da moeda estável.
Deu certo.
Sobe
Na época do lançamento, 1
BTC equivalia a poucos centavos de dólar. Em junho deste ano, chegou a
valer US$ 30 - uma valorização de (pausa dramática) quase 30 000%. Quem
tinha comprado US$ 1 em bitcoins agora podia vender a mesma quantidade
de BTCs por US$ 3 mil. Apesar de ter saído do papel ainda em 2009, foi
apenas durante um discurso feito nesse ano que a moeda ganhou
notoriedade. No início de junho, o senador americano Charles Schumer foi
ao Congresso dizer que bitcoins estavam sendo usados para a compra de
drogas. Mas, com seu depoimento, ele apenas chamou mais a atenção para o
assunto (poucos meses antes, o mesmo Schumer resolveu pedir ao
Congresso que proibisse o Fuzz Alert, um aplicativo para smartphone que
avisava os motoristas da presença de controladores de velocidade. O
número de downloads duplicou em poucos dias).
"Logo depois que
ele falou (ainda que mal) sobre o bitcoin, muitas pessoas começaram a
comprar por curiosidade nos Estados Unidos, aí o preço subiu e juntou um
monte de gente pra minerar", explica Leandro César, administrador e um
dos principais fomentadores da moeda no Brasil. Na segunda-feira, 6 de
junho, um dia depois do discurso de Schumer, 1 BTC valia US$ 8. Quando o
mercado abriu na manhã de sexta, dia 10, já valia US$ 28. Uma
valorização de 250% em uma semana. Isso se a semana encerrasse na sexta
de manhã, claro.
Desce
Ao meio-dia dessa
mesma sexta-feira, 1 BTC inexplicavelmente passou a valer apenas US$ 20.
"Como tinha muita gente minerando, o mercado ficou cheio de bitcoins,
então os preços caíram e os especuladores saíram correndo para vender",
conta César. Ele explica que o fato de o sistema ser automatizado não
garante estabilidade: "Ninguém prevê a demanda, só a oferta. Ainda que
só saia um bloco de 50 BTCs a cada 10 minutos, se um site de câmbio
muito importante for invadido, a demanda pela moeda pode cair
bruscamente".
O exemplo do site invadido não foi escolhido por
acaso. Exatamente duas semanas depois da manifestação de Schumer, um
auditor da MT Gox, o maior site de troca de bitcoins por dinheiro
(existem vários), teve seu computador invadido. Os hackers tiveram
acesso aos dados de mais de 60 mil contas, escolheram uma das mais
polpudas e tentaram vender tudo que tinha nela. Foram impedidos porque
havia um limite de 1 000 BTCs por dia, mas mesmo essa venda fez com que o
valor da moeda despencasse de US$ 17,50 para alguns centavos. Como
apenas uma conta tinha sido comprometida, a MT Gox conseguiu anular
todas as transações feitas depois do ataque e restaurou o preço de US$
17,50.
A principal crítica feita ao sistema era que, se alguma
coisa acontecesse com o dinheiro dos usuários (e muitas coisas estavam
acontecendo), eles não teriam a quem recorrer. Pois que no final de
julho uma falha no sistema fez com que outro site de trocas, o Bitomat,
perdesse todos os bitcoins dos seus usuários. Evaporaram 17 mil BTCs, ou
US$ 220 mil. Era a prova prática de que os críticos tinham razão: não
havia a quem pedir socorro. "Quando isso aconteceu, achei que ia acabar
tudo", lembra Leandro. Quase acabou: o valor dos bitcoins caiu a
praticamente zero. O mercado estava congelado.
E agora?
Surpreendentemente,
a MT Gox, aquela mesma que tinha sofrido com ataques cerca de um mês
antes, resolveu incorporar a Bitomat e indenizou todos os prejudicados.
Mas mesmo essa intervenção não elevou o bitcoin ao patamar dos bons
tempos - até o fechamento desta edição 1 BTC flutuva entre US$ 4 e US$
5. "O valor do bitcoin hoje depende muito de o quão confiantes os
especuladores estão de que a moeda se confirme como um meio importante
de pagar por coisas no futuro. Isso faz com que esse valor seja muito
volátil, e isso é ruim porque um preço volátil torna difícil que os
comerciantes aceitem a moeda como pagamento", explica Andersen. Mesmo
assim, hoje centenas de estabelecimentos aceitam bitcoins - a grande
maioria sites de comércio eletrônico, mas que vendem de tudo.
Andersen,
porém, não tem ambições muito maiores para a moeda. "Eu gostaria que o
bitcoin ficasse `chato¿ - só um outro jeito de pagar por coisas online e
que fosse tão fácil de usar quanto um cartão de crédito ou o PayPal são
hoje", completa. Isso significa, basicamente, que o bitcoin até pode
continuar existindo como método de pagamento alternativo ao dinheiro,
mas nunca chegará a substituí-lo. A opinião vai ao encontro do que pensa
Leandro César: "Não acredito que ele vá tomar o lugar do dinheiro
tradicional. Deve se tornar uma moeda B, não uma moeda A".
Mas
que ninguém duvide do BTC - ou da próxima moeda "de brinquedo" que
aparecer. Quando se trata de futurologia em economia, convém não
acreditar em todas as previsões. Ainda em 1999, o antropólogo
Weatherford destilava seu pessimismo em relação a um certo sistema
"ilusório" de transferências: "O conceito largamente debatido de o
indivíduo realizar transações financeiras pelo computador doméstico
usando linhas telefônicas demonstrou ser muito mais ilusório do que os
tecnófilos e futuristas haviam previsto". É. Às vezes os futuristas
acertam.
250% - Foi a valorização da moeda em uma semana, no auge da febre do bitcoin
30 000% - Foi o quanto o bitcoin subiu de 2009 a 2011
99,9% - Foi a perda de quem passou pelo crash do bitcoin
US$ 30 milhões - É o quanto os 7 milhões de bitcoins em circulação hoje valem no mercado